Baldeação

Você, leitora amiga, sabe que a busca pelo menor preço não vê limites. E a busca pelo cabelo domado segue o mesmo caminho. Junta os dois e voilá – tá lá você, domingo à noite, rumo aos confins do subúrbio pra fazer o escovão mais barato.

Cena um. Metrô estação Botafogo. Aquela coisa de sempre. Algumas pessoas voltando da praia, outras indo pro jogo do Fluminense. Tranquilo. Aturável. Até descer no Estácio.

Vejam bem, preciso deixar claro que não tenho qualquer problema com o subúrbio. Morei no Engenho de Dentro por mais de vinte anos. Já fiquei trancada em padaria esperando o comércio abrir tão logo acabasse a guerra entre a galera do Morro da Camarista e do Morro da Água Santa. E saí de lá com pãozinho. Comprei brinco na feirinha da Sans Peña, corri atrás de doce em setembro, dancei em coreto, tive medo de fantasia de macaco e brinquei muito em volta da mangueira da casa do meu avô em Inhaúma. Adoro o subúrbio. Sou o subúrbio. Por favor, não me processem.

Seguindo.

A estação Estácio aos domingos é quase igual à Lapa. Não vi passar travesti, mas vi um casal que me deixou deveras intrigada. Eram dois homens. Até aí, ok. Só que um deles estava grávido. Reflita.

Chegou o metrô. Pelo que entendi, no Estácio, se você não consegue sentar, você é um bosta. O metrô chegando na estação e as pessoas se empurrando pra porta. Todos querem entrar primeiro. O trem para e, eu juro, tinha gente com a cara colada no vidro. Lembrei daquele show do Pearl Jam em que morreu gente pisoteada no gargarejo e achei prudente me afastar. A porta abriu, e então lembrei do Festival de Pamplona. Foi o estouro da boiada. As pessoas gritavam, corriam e, enfim, sentavam. O irônico? Sobrou lugar.

Sobrou só até a próxima estação. Acho que todos os moradores de São Cristóvão entraram naquele vagão. Pessoas com piscina infantil. Pessoas com bancos de plástico pra sentar no meio do trem. Pessoas se agarrando a dois centímetros de mim. Pessoas se esfregando em desconhecidos sem a menor cerimônia.

Tinha uma menina na minha frente que devia ter uns dezessete anos, apesar de aparentar uns setenta e oito. Ela tinha umas tatuagens nas costas e a vontade que tive foi de perguntar que crime ela cometeu, porque não era possível que aquilo tivesse sido feito fora de uma penitenciária.

E tinha a senhora. A senhora do meu lado me perguntou se a próxima estação era Del Castilho-Nova América. Respondi com certa dificuldade que ainda faltava Triagem, Maria da Graça e mais umas duas que, graças a deus, não me lembro mais. Na estação seguinte, de novo, “essa já é Del Castilho?” Não, senhora. Ainda faltam três. E na seguinte? “Essa já é Del Castilho?” Já. Já é sim, senhora. Acho que ela desconfiou e fez o que deveria ter feito desde o começo: leu a placa. “Ah não, é Maria da Graça ainda.” “Pois é, senhora. Ainda falta.”

E seguimos. Tatuagens com todos os nomes do mundo no antebraço das pessoas. Homens com unhas da mão decoradas com decalque de patinhas. Radinhos tocando todos os hits da Furacão 2000 ao mesmo tempo. Mechas loiras. E eu. Focando nos 50% OFF.

Cheguei. Meu deus. Desci. Respirei. Entrei no salão e achei que estava salva. Ar-condicionado. Cheiro de formol. A moça passou aquela química toda no meu cabelo e me deixou para esperar o tempo necessário. Eu estava enfim sozinha num cadeirão, com um espelho na frente, uma luz ótima e uma edição de bolso dos diários de Bukowski.

Comecei a ler o livro. A tradução era ridícula. Me dei conta que era L&PM, e me perguntei porque eu estava fazendo aquilo. Tenho outras edições de Bukowski em casa, algumas em inglês inclusive, e não é uma leitura difícil. Por que, então, aquilo? No meio dos meus questionamentos literários, chega ele. O Beto. Vocês não conhecem o Beto? Ah, vocês não conhecem nada.

Beto é aquele cara que chega falando alto, de regata da Riachuelo e bermuda de surfista. Beto usa o relógio mais dourado da Terra. Beto tem uma índia tatuada no braço. E Beto não estava feliz com suas mechas loiras. Ele explicou para a cabeleireira que fizeram mechas demais, e que elas estavam verdes; que o que ele queria eram pequenas manchas amarelas. Ela explicou pacientemente que não tem como regredir. Ela tem como fazer mechas mais escuras de modo que área loira diminua. Aí ela explicou de novo. Aí ela explicou de novo. E de novo. Ele não entendia a gestalt das mechas loiras e escuras. Nessa hora, lembrei que tenho iPod.

Cheguei em casa lá pras 21h. Cabelo arrumado. Filho dormindo. Vinho na geladeira. Marido voltando de viagem. Todo esse relato foi contado às gargalhadas e, no fim das contas, o saldo foi positivo. Apesar de tudo. É bom saber que o lugar de onde você veio continua ali. Talvez irrite mais por isso mesmo. Mas continuam todos ali, lembrando que onde você está agora não é o topo do mundo, e que sempre voltamos a nossas origens, ainda que seja só pra fazer uma escova. O choque, no final das contas, não foi com a diferença. Quem sabe. Foi mesmo com a semelhança.

16 pensamentos sobre “Baldeação

  1. “Ela tinha umas tatuagens nas costas e a vontade que tive foi perguntar que crime ela cometeu, porque não era possível que aquilo tivesse sido feito fora de uma penitenciária.”

    Tadinha, foi cômico mas…tadinha.

  2. Opa! Quem é esse Beto???? hehe :D

    Eu não sei se gostei mais do texto ou do nome da categoria – Mimimi. hahahahaha

    Bjs!

    P.S.: e o lha que o metrô é uma dos meios de transporte coletivo mais civilizados e modernos, hein?

  3. Engraçado que eu passei a gostar mais do suburbio depois de 5 anos na ZS. Campo Grande é suburbio ou roça? Enfim… É calmo, muito mais silencioso, menos inquisitivo. Acho que é essa semelhança aí que você falou mesmo. Quando atravesso a Av. Brasil back to Big Field, vejo as montanhas verdes do mendanha e aquele silêncio fico em paz rapidinho. :D Pena que é longe do trabalho e dos amigos.

  4. Eu percebi que esse negócio de passarinho, bodinho, leite de vaca tirado na hora, isso não deixa a casca de ninguém forte, amiga. Ainda bem que a guerrilha eu deixo pra tu me ensinar.

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